O FUNDO E A SUPERFÍCIE

quarta-feira, 18 de agosto de 2010.
O FUNDO E A SUPERFÍCIE

Um homem no fundo do poço. De pé. Olha para o alto. Veste roupas elegantes e não parece excitado. Vê a boca do poço muitos metros acima, o eixo com a corda enrolada tendo embaixo o balde pendurado e, por trás, o azul infinito do céu contido num pequeno círculo.
À sua volta a escuridão e os organismos a ela próprios e, quase palpável, a tentar beliscá-lo, mais que os insetos e aracnídeos, a solidão que o esmaga.
Seus ouvidos, entupidos, com dificuldade captam ruídos que não reconhece, como se procedessem de lugares distantes e só depois de muitos obstáculos lhes chegassem, confusos e distorcidos.
Seu olhar continua fixo na clara abertura do topo, atraído de forma inexorável pela cor e pela luz, pequenos indícios de que lá fora um grande mundo o espera, mas suas botas, enterradas até o meio do cano no solo pegajoso do fundo, o mantêm fixado: movimentos tolhidos, sentidos embaçados, percepção reduzida.
Não tem idéia de há quanto tempo está ali, mas lhe parece um largo período, ainda contando que perdera momentos preciosos olhando para baixo, como que hipnotizado pelo lodo, comprazendo-se em chafurdar; até que algo luminescente acima de sua cabeça o assustou a princípio, mas depois o deixou como que maravilhado, e teve que desviar as vistas que se ofuscaram, mesmo diante do parco raio de sol que vislumbrara, dado seu hábito à escuridão.
Ainda não sabia como, mas resolvera sair dali, alcançar a claridade, e começara a pensar em como fazê-lo. Deveria haver um jeito, e teria que ser logo, e quem sabe se livrasse daquele peso dolorido no corpo, da sensação de paralisia e da dificuldade que sentia em respirar.
Talvez subisse pela corda do alto, que teria que desenrolar de algum jeito; ou quem sabe tentasse escalar pelos interstícios das lisas e limosas pedras que, arrumadas, formavam o cilindro de granito fincado vertical no solo.
Vê a pequena folha seca, que vem girando e pousa, duas braças acima de seu rosto, na fina película, formando pequenas ondulações, como se fosse um sopro no finíssimo véu que separa a atmosfera mais sutil e diáfana acima, do fluido pesado, escuro e frio, abaixo, onde continua imóvel, apesar das roupas elegantes, silencioso e impassível, encharcado até os ossos.

Comentários:

Postar um comentário

 
. © Copyright 2010 | Design By O mago da imagem |