segunda-feira, 2 de agosto de 2010.
A CACHORRADA

O pessoal das redondezas já nem estranha mais ao me ver acompanhado dos cinco cachorros que me seguem em qualquer parte que eu vá.
Moro num bairro afastado, entre o terminal ferroviário de cargas e as docas, onde aportam pesqueiros e cargueiros, o que faz a atmosfera ser sempre uma mistura dos cheiros de peixe, graxa e maresia, acrescidos dos vapores de dezenas de pequenos restaurante, bares, cantinas e lupanares que infestam o local, oferecendo má comida, má bebida e má companhia.
Tudo começou há cerca de seis meses quando, ao sair de casa – não é bem uma casa, mais uma vaga num beco, para onde sempre volto ao fim de minhas noitadas, para dormir e me recuperar das extravagâncias noturnas – fui tocado pelos lamentos famintos de um filhote recém desmamado, uma bolinha peluda, ainda incapaz de se virar sozinho. Empurrei-o para trás de uma lata de lixo e fui correndo pegar uns pedaços de carne que me sobraram do almoço, os quais o cãozinho engoliu com avidez, quase se engasgando, ficando depois a cochilar, as patinhas para cima, exibindo o ventre estufado que mais parecia um tambor.
Não trabalho, mas também não dispenso a caridade alheia; por outro lado, sou especialista no garimpo às latas de lixo, que vez por outra surpreendem com fartura e qualidade jamais imaginadas e, sendo assim, nunca tinha pensado em ter cachorro, pois acho que animal é para ser bem tratado; mas depois deste incidente, o pequeno cão se afeiçoou a mim e não tive coragem de despedi-lo, passando a trazer sempre da rua algo que pudesse alimentá-lo, incluindo-o à minha incerta sobrevivência. Até que passou a acompanhar-me. Em referência ao couro esticado de sua barriga, dei-lhe o nome de Bumbo.
Nem dois meses se passaram, ele crescendo rapidamente, travesso, irrequieto e bagunceiro, quando, ao chegarmos de um passeio, reparamos que havíamos sido seguidos por um cão grande, de pelo amarelado, mancando e de vez em quando soltando alguns lamentos doloridos, que coincidiam com o toque de sua pata machucada no chão. Paramos e o cachorrão deitou-se imediatamente, extenuado, as forças exeuridas pelo cansativo caminhar em apenas três pernas. Os arranhões das costas de pelagem amarela estavam com filetes de sangue coagulado e nos olhos tinha uma poça vermelha, resultado de pancada. Tinha sido atropelado. Deixei que ali ficasse para se recuperar, sem poder imaginar que ele não mais iria embora. Deu um pouco de trabalho arranjar comida que o satisfizesse, mas valeu a pena, pois logo revelou-se um bom guarda de segurança, já que ninguém se aproximava de nosso beco sem que desse o alarme com seu ladrar potente e incansável. Chamei-o Buzinhas.
Um belo dia, quando acordei, deparei-me com ele enroscado numa bela fêmea, negra e de longos e abundantes pelos eriçados, que não parava de se esfregar, emitindo grunhidos e gemidos de dengo e prazer, que deixavam Buzinas louco de excitação, passando a dedicar-se aos impulsos da lascívia, a libido no comando. Dei a ela o nome de Escova.
Por último, vieram os dois gêmeos, idênticos, marrons de pelo curto, focinho pontudo, ambos com o rabo cortado mostrando que já tinham tido dono. Apareceram na hora em que eu verificava o conteúdo da enorme caçamba que recebia os restos do restaurante chinês e ficaram a observar-nos com o olhar pedinte. Estavam magros e famintos e foi com satisfação que compartilhamos com eles a féria do dia, divertindo-nos mais em vê-los disputar entre si os diversos petiscos que eu lhes jogava do que propriamente a degustá-los. No terceiro dia, já completamente integrados ao meu grupo de acompanhantes, batizei-os de Bico e Beco.
Mas às vezes era cansativa tal companhia, os cães irrequietos e barulhentos, sempre estouvados e competitivos, ultimamente brigando entre si, na disputa pelos carinhos de Escova, deixavam-me deprimido, com saudades dos meus momentos de privacidade, a que eu era afeito por natureza, instantes de contemplação que me permitia, necessários para o meu refazimento mental após as duras e cansativas batalhas de sobrevivência no dia-a-dia.
Por isso é que cada vez mais amiúde, após deixá-los acomodados em nosso beco, empanturrados e quietos, sonolentos e felizes, escapo daquela cachorrada, sem aviso, solitário e independente, para me esgueirar silencioso por terrenos alheios, saltando muros e cercas, atravessando jardins e quintais, em devaneios noturnos, madrugada adentro, dando vazão a todo o romantismo de minha solidão e terminando a noite invariavelmente sobre algum telhado, olhando encantado para o céu, a miar comovido, perdidamente apaixonado pela lua.

do livro HISTÓRIAS DE JUÍZO INCERTO... RAZÃO DISCUTÍVEL... MORAL DUVIDOSA

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