AS DUAS VIDAS DO TEXTO

quinta-feira, 19 de agosto de 2010.
AS DUAS VIDAS DO TEXTO

Caiu-me nas mãos sem aviso prévio. Em meio a amigos, vários livros manipulados, e inadvertidamente um permaneceu comigo, perfeitamente encaixado em minhas mãos ou meticulosamente adaptado à axila enquanto cumprimentava alguém, o dono anônimo sem dar por sua falta ou ao menos reclamá-lo. Só na ida para casa, sentado no banco sem estofado do ônibus, comecei a folheá-lo: um exemplar da revista QVINTO IMPÉRIO. Mais de três anos depois de sua publicação e eu ali, passeando pelo sumário, olhos ávidos e seletivos nos diversos títulos de artigos, ensaios, críticas, manifestos e releituras; também poesias, e por fim, para meu profundo deleite, alguns contos, dos quais escolhi Os Galos da Aurora. Localizei a página e comecei a dar vida à estória; sua segunda vida, a que completaria o ciclo de sua existência. Sim, porque a primeira vida de um texto se inicia na prática de transcrevê-lo o autor, dos interstícios da mente, dos meandros da imaginação, dos empoeirados escaninhos da lembrança, de onde o extrai, transportando-o com suas características e nuances, seus valores e ambientes para a imensidão branca e passiva do papel que passa a ser o fiel depositário das emoções nele contidas. Mas nada disso teria sentido, não houvesse a situação contrária, quando o leitor, qualquer um; nos minutos seguintes, três anos como no meu caso ou vinte séculos depois, praticando o milagre da leitura, passa a percorrer o caminho inverso e começa a desvendar o que antes existiu somente na cabeça do escritor, decodificando os diversos símbolos da página, passando a descortinar paisagens, vislumbrar personagens, vivenciar situações em que muitas vezes o coração palpita de poesia, dispara de emoção, desmaia de susto ou morre de paixão.
E assim foi com este anoitecer; pensei penetrá-lo mas foi ele que me envolveu: “Noites compridas que tardam a passar... de princípio de mundo, fechadas, compactas...uma lua morosa por trás de nuvens pesadas...a tinta derramada na folha em branco do dia, a grossa tinta escura que apaga a escrita clara do sol.” Apesar do foco tremido da luminária do veículo, vejo-me alcançado pelo inexorável manto escuro, denso e imensurável. A personagem dorme, e o seu sono nem de longe ameaça minha vígil acuidade “...o menino ainda assim não desperta. Dorme um sono de pedra. Tem o sono final dos corpos fatigados ao extremo...Ou a irremovível inconsciência da pedra, que pode ser deslocada, rolada ou partida - e ainda assim mantém inviolado o veio de sua intemporal indiferença.” Mas há também a solidão da insônia, que mesmo que a ninguém seja novidade, me esmaga inesperadamente, a mim, o leitor que, escondido, observa: “...Acorda por acordar, sem aviso da bexiga ou dos intestinos. Os olhos se abrem para o negror que o envelopa, que dissolve cama, quarto, paredes, que parece deixá-lo sozinho...” mas, alívio, a madrugada afinal surge “... o negror que se esgarça... o sutil ingresso, em abafados passos... caviloso, corrompe o negro...a claridade submarina que entra pela fresta...” e enfim os galos... “alguns de claro canto auroral, outros de roufenho canto fúnebre... empenhados em rasgar o peito da noite... que começa... nas manobras do entardecer, e cai, sólida, como um capuz de ferro, sobre a terra, a casa, o mundo.” Galos que brigam, eriçam as penas, arrastam esporão e enfunam o peito, mas também ciscam terreiro, cobrem galinhas, e mais importante: cantam, cantam com seu canto rouco ou estridente, abafado ou possante e parecem puxar para mais perto os “primeiros rubores da manhã – outra manhã, um novo dia”. E por fim o autor me fez com suas palavras, mais que com minhas vistas, de dentro de um ônibus que varava a escuridão, enxergar todo o lirismo e a poesia da claridade expulsando a noite, levando-me juntamente com a personagem a novo enfoque sobre a força desse ciclo ao dizer que “...ele soube que o mundo, alheio a dores e golpes, se renovava todas as manhãs, e que à treva, por mais funda que seja a noite, sempre sucede a luz – e que a luz sempre traz um séquito de retemperadas forças, porque, apesar de tudo, é preciso amanhecer.”

Os trechos em itálico são excertos de OS GALOS DA AURORA - conto de Hélio Pólvora; crítico, tradutor, ficcionista, da Academia de Letras da Bahia.
QVINTO IMPÉRIO- Revista de Cultura e Literaturas do Gabinete Português de Leitura - o exemplar referido, do primeiro semestre de 1997.
AS DUAS VIDAS DO TEXTO
Hugo Pinto Homem
Caiu-me nas mãos sem aviso prévio. Em meio a amigos, vários livros manipulados, e inadvertidamente um permaneceu comigo, perfeitamente encaixado em minhas mãos ou meticulosamente adaptado à axila enquanto cumprimentava alguém, o dono anônimo sem dar por sua falta ou ao menos reclamá-lo. Só na ida para casa, sentado no banco sem estofado do ônibus, comecei a folheá-lo: um exemplar da revista QVINTO IMPÉRIO. Mais de três anos depois de sua publicação e eu ali, passeando pelo sumário, olhos ávidos e seletivos nos diversos títulos de artigos, ensaios, críticas, manifestos e releituras; também poesias, e por fim, para meu profundo deleite, alguns contos, dos quais escolhi Os galos da aurora. Localizei a página e comecei a dar vida à estória; sua segunda vida, a que completaria o ciclo de sua existência. Sim, porque a primeira vida de um texto se inicia na prática de transcrevê-lo o autor, dos interstícios da mente, dos meandros da imaginação, dos empoeirados escaninhos da lembrança, de onde o extrai, transportando-o com suas características e nuances, seus valores e ambientes para a imensidão branca e passiva do papel que passa a ser o fiel depositário das emoções nele contidas. Mas nada disso teria sentido, não houvesse a situação contrária, quando o leitor, qualquer um; nos minutos seguintes, três anos como no meu caso ou vinte séculos depois, praticando o milagre da leitura, passa a percorrer o caminho inverso e começa a desvendar o que antes existiu somente na cabeça do escritor, decodificando os diversos símbolos da página, passando a descortinar paisagens, vislumbrar personagens, vivenciar situações em que muitas vezes o coração palpita de poesia, dispara de emoção, desmaia de susto ou morre de paixão.
E assim foi com este anoitecer; pensei penetrá-lo mas foi ele que me envolveu: “Noites compridas que tardam a passar... de princípio de mundo, fechadas, compactas...uma lua morosa por trás de nuvens pesadas...a tinta derramada na folha em branco do dia, a grossa tinta escura que apaga a escrita clara do sol.” Apesar do foco tremido da luminária do veículo, vejo-me alcançado pelo inexorável manto escuro, denso e imensurável. A personagem dorme, e o seu sono nem de longe ameaça minha vígil acuidade “...o menino ainda assim não desperta. Dorme um sono de pedra. Tem o sono final dos corpos fatigados ao extremo...Ou a irremovível inconsciência da pedra, que pode ser deslocada, rolada ou partida - e ainda assim mantém inviolado o veio de sua intemporal indiferença.” Mas há também a solidão da insônia, que mesmo que a ninguém seja novidade, me esmaga inesperadamente, a mim, o leitor que, escondido, observa: “...Acorda por acordar, sem aviso da bexiga ou dos intestinos. Os olhos se abrem para o negror que o envelopa, que dissolve cama, quarto, paredes, que parece deixá-lo sozinho...” mas, alívio, a madrugada afinal surge “... o negror que se esgarça... o sutil ingresso, em abafados passos... caviloso, corrompe o negro...a claridade submarina que entra pela fresta...” e enfim os galos... “alguns de claro canto auroral, outros de roufenho canto fúnebre... empenhados em rasgar o peito da noite... que começa... nas manobras do entardecer, e cai, sólida, como um capuz de ferro, sobre a terra, a casa, o mundo.” Galos que brigam, eriçam as penas, arrastam esporão e enfunam o peito, mas também ciscam terreiro, cobrem galinhas, e mais importante: cantam, cantam com seu canto rouco ou estridente, abafado ou possante e parecem puxar para mais perto os “primeiros rubores da manhã – outra manhã, um novo dia”. E por fim o autor me fez com suas palavras, mais que com minhas vistas, de dentro de um ônibus que varava a escuridão, enxergar todo o lirismo e a poesia da claridade expulsando a noite, levando-me juntamente com a personagem a novo enfoque sobre a força desse ciclo ao dizer que “...ele soube que o mundo, alheio a dores e golpes, se renovava todas as manhãs, e que à treva, por mais funda que seja a noite, sempre sucede a luz – e que a luz sempre traz um séquito de retemperadas forças, porque, apesar de tudo, é preciso amanhecer.”

Os trechos em itálico são excertos de OS GALOS DA AURORA - conto de Hélio Pólvora; crítico, tradutor, ficcionista, da Academia de Letras da Bahia.
QVINTO IMPÉRIO- Revista de Cultura e Literaturas do Gabinete Português de Leitura - o exemplar referido, do primeiro semestre de 1997.
AS DUAS VIDAS DO TEXTO
Hugo Pinto Homem
Caiu-me nas mãos sem aviso prévio. Em meio a amigos, vários livros manipulados, e inadvertidamente um permaneceu comigo, perfeitamente encaixado em minhas mãos ou meticulosamente adaptado à axila enquanto cumprimentava alguém, o dono anônimo sem dar por sua falta ou ao menos reclamá-lo. Só na ida para casa, sentado no banco sem estofado do ônibus, comecei a folheá-lo: um exemplar da revista QVINTO IMPÉRIO. Mais de três anos depois de sua publicação e eu ali, passeando pelo sumário, olhos ávidos e seletivos nos diversos títulos de artigos, ensaios, críticas, manifestos e releituras; também poesias, e por fim, para meu profundo deleite, alguns contos, dos quais escolhi Os galos da aurora. Localizei a página e comecei a dar vida à estória; sua segunda vida, a que completaria o ciclo de sua existência. Sim, porque a primeira vida de um texto se inicia na prática de transcrevê-lo o autor, dos interstícios da mente, dos meandros da imaginação, dos empoeirados escaninhos da lembrança, de onde o extrai, transportando-o com suas características e nuances, seus valores e ambientes para a imensidão branca e passiva do papel que passa a ser o fiel depositário das emoções nele contidas. Mas nada disso teria sentido, não houvesse a situação contrária, quando o leitor, qualquer um; nos minutos seguintes, três anos como no meu caso ou vinte séculos depois, praticando o milagre da leitura, passa a percorrer o caminho inverso e começa a desvendar o que antes existiu somente na cabeça do escritor, decodificando os diversos símbolos da página, passando a descortinar paisagens, vislumbrar personagens, vivenciar situações em que muitas vezes o coração palpita de poesia, dispara de emoção, desmaia de susto ou morre de paixão.
E assim foi com este anoitecer; pensei penetrá-lo mas foi ele que me envolveu: “Noites compridas que tardam a passar... de princípio de mundo, fechadas, compactas...uma lua morosa por trás de nuvens pesadas...a tinta derramada na folha em branco do dia, a grossa tinta escura que apaga a escrita clara do sol.” Apesar do foco tremido da luminária do veículo, vejo-me alcançado pelo inexorável manto escuro, denso e imensurável. A personagem dorme, e o seu sono nem de longe ameaça minha vígil acuidade “...o menino ainda assim não desperta. Dorme um sono de pedra. Tem o sono final dos corpos fatigados ao extremo...Ou a irremovível inconsciência da pedra, que pode ser deslocada, rolada ou partida - e ainda assim mantém inviolado o veio de sua intemporal indiferença.” Mas há também a solidão da insônia, que mesmo que a ninguém seja novidade, me esmaga inesperadamente, a mim, o leitor que, escondido, observa: “...Acorda por acordar, sem aviso da bexiga ou dos intestinos. Os olhos se abrem para o negror que o envelopa, que dissolve cama, quarto, paredes, que parece deixá-lo sozinho...” mas, alívio, a madrugada afinal surge “... o negror que se esgarça... o sutil ingresso, em abafados passos... caviloso, corrompe o negro...a claridade submarina que entra pela fresta...” e enfim os galos... “alguns de claro canto auroral, outros de roufenho canto fúnebre... empenhados em rasgar o peito da noite... que começa... nas manobras do entardecer, e cai, sólida, como um capuz de ferro, sobre a terra, a casa, o mundo.” Galos que brigam, eriçam as penas, arrastam esporão e enfunam o peito, mas também ciscam terreiro, cobrem galinhas, e mais importante: cantam, cantam com seu canto rouco ou estridente, abafado ou possante e parecem puxar para mais perto os “primeiros rubores da manhã – outra manhã, um novo dia”. E por fim o autor me fez com suas palavras, mais que com minhas vistas, de dentro de um ônibus que varava a escuridão, enxergar todo o lirismo e a poesia da claridade expulsando a noite, levando-me juntamente com a personagem a novo enfoque sobre a força desse ciclo ao dizer que “...ele soube que o mundo, alheio a dores e golpes, se renovava todas as manhãs, e que à treva, por mais funda que seja a noite, sempre sucede a luz – e que a luz sempre traz um séquito de retemperadas forças, porque, apesar de tudo, é preciso amanhecer.”

Os trechos entre aspas são excertos de OS GALOS DA AURORA - conto de Hélio Pólvora; crítico, tradutor, ficcionista, da Academia de Letras da Bahia.
QVINTO IMPÉRIO- Revista de Cultura e Literaturas do Gabinete Português de Leitura - o exemplar referido, do primeiro semestre de 1997.

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